por Mauro Ulrich

Estou só.

Espalho velhas fotografias

sobre a colcha da cama

e aproveito o silêncio da casa

para espiar as pessoas

que eu fui um dia.

 

Numa imagem apareço de calças curtas rolando uma bola na areia da praia. Uma praia que já nem sei. Na outra, estou comendo uma banana sentado em um balanço, imóvel, numa praça qualquer, calçando um par de Congas por sobre as meias brancas. Numa terceira, apareço com uma faca na mão direita e faço as vezes de um serial killer, um assassino violento. A “vítima” também aparece na foto: um imponente e delicioso bolo de casamento. O meu casamento.

 

Mas é a minha memória que sangra agora.

Sim, sinto uma falta profunda

de todos estes “eus”

que eu já fui um dia:

o jovem esportista,

o menino comedor de bananas,

o homem apaixonado acima de tudo – e por tudo.

 

O silêncio da casa é cúmplice nesta profusão de sentimentos que as velhas fotos me provocam agora. As fotos têm uma tonalidade bronze e o aroma característico das coisas antigas. O mofo e a química da revelação. Não consigo lembrar quem as bateu. Quem as tirou, tirou também um pouco de mim. Arrancou um pouco de mim e de todas estas pessoas que eu já fui um dia.

 

Fotografar

com precisão

é tirar

da alma

o coração.

 

Recolho as fotos, uma a uma, de cima da colcha, e as recoloco ordenadamente na antiga caixa de papelão. Não mais rolar uma bola na areia. Não mais comer bananas na praça. Não mais cravar a faca afiada no glacê doce e fino de um coração.

 

Foto do autor Mauro Ulrich, poeta, jornalista e editor do jornal Sarau, colaborador da Casa do Criar.

Mauro Ulrich é poeta e jornalista, editor do jornal sarau voltado à produção literária do Vale do Rio Pardo.

Instagram @ulrich.mauro