por Caco Baptista
“Aquilo que sabemos sobre nossa sociedade, ou mesmo sobre o mundo no qual vivemos, o sabemos pelos meios de comunicação.”
Com essa frase, a primeira de seu livro A realidade dos meios de comunicação[i], Niklas Luhmann nos coloca diante do fato de que a realidade é construída na e pela comunicação. Mais adiante, entrando no quarto final do livro, Luhmann nos apresenta aquelas que seriam as questões cruciais de nosso tempo:
“A questão agora é: que descrição da realidade produzem os meios de comunicação (...)? E se nós estivéssemos em condições de extrair um julgamento a respeito disso, apareceria, então, imediatamente, a questão seguinte: que sociedade surge quando ela se informa corrente e continuamente sobre si mesma dessa maneira?”[ii]
O que é a realidade descrita pelos meios de comunicação? Como essa descrição afeta a construção da sociedade?
Que mundo conhecemos? O mundo que é trazido até nós, até o universo do nosso conhecimento, até o âmbito da nossa percepção. Como não podemos estar em todos os lugares nem podemos ver todos os acontecimentos, alguém precisa nos contar as coisas, nos relatar os acontecimentos, nos reportar o que acontece nos mais diversos lugares. Os meios de comunicação – rádio, cinema, jornais, revistas, televisão, redes sociais[iii] - fazem isso. Mas que acontecimentos eles nos trazem, que mundo eles nos mostram, que verdade eles nos contam? Qual é a realidade que vemos através das lentes dos meios de comunicação?
O mundo que nos é trazido pelos meios de comunicação e a partir do qual refletimos, aprendemos, formamos opiniões, é um mundo que nos chega mediado por dezenas, centenas, talvez milhares de filtros. Ele percorre um trajeto no qual é redesenhado, reorganizado, remontado através desta diversidade de filtros.
Esses filtros – o rádio, a TV, o jornal, o cinema, as redes sociais, nossos vizinhos e amigos, todos aqueles que nos contam coisas, que nos relatam acontecimentos, eventos, fatos – fazem o que? Esses filtros selecionam o que vamos ouvir, ver ou ler e como isso será descrito e abordado, fazem a edição do mundo que conhecemos. Ou seja, o mundo é editado e é assim que ele chega a todos nós.
Esta edição – que nos mostra o mundo que conhecemos, o mundo a que temos acesso – obedece a interesses e valores variados: econômicos, políticos, religiosos, estéticos etc. Editar é reconfigurar alguma coisa, dando-lhe um novo significado, atendendo a determinado interesse, buscando um determinado objetivo, fazendo valer um determinado ponto de vista, assumindo uma determinada perspectiva, destacando determinados aspectos e obscurecendo ou eliminado outros, carregando vieses diversos.
Editar é construir uma realidade a partir de supressões ou acréscimos em um acontecimento. Ou, em muitos casos, apenas pelo destaque de uma parte em detrimento de outra. Ao editarmos a realidade, aumentamos um ponto, diminuímos outro, iluminamos aqui, escurecemos ali. Nessa perspectiva, um documentário, uma notícia ou uma reportagem, todas têm um aspecto de construção ou reconstrução da realidade. Ou seja, um documentário, uma matéria jornalística, uma entrevista, nos trazem uma visão da realidade, mas não a realidade. Não toda a realidade, não a realidade em todos os seus aspectos e em toda a sua complexidade. Não podemos ter acesso a todas as diferentes dimensões e perspectivas da realidade. Pelo menos, não ao mesmo tempo.
Assim, para termos condições de conhecer melhor o mundo – e, se for o caso, tentar transformá-lo – é necessário que possamos desvendar os mecanismos usados em sua edição. Que mundo é esse que nos é mostrado? O que foi amplificado? O que foi obscurecido? O que não foi mostrado ou foi reduzido? Que interesses e que objetivos levaram a destacar este ponto de vista e não outro? Seria possível mostrar essa realidade de outra maneira? Mas aí seria ainda a mesma realidade? Ou seria outra? Estamos falando de representações da realidade ou de construção de realidades? O que é a realidade?
Os meios de comunicação e redes sociais são os principais veículos de divulgação das diferentes representações da realidade a que temos acesso ou, melhor dito, são os principais veículos de construção da realidade a que temos acesso. E são a fonte primeira que educa a todos os educadores: mães e pais, professora/es, autore/as etc. Por isso precisamos procurar entendê-los bem e saber ler criticamente o que eles nos mostram.
Só assim poderemos trabalhar adequadamente esses meios em nossas atividades educacionais de modo a conseguirmos, junto com nossos colegas e estudantes, percorrer o caminho que vai do mundo que nos entregam pronto e editado até a compreensão dos interesses que orientam as operações de construção da realidade pelos meios de comunicação para então podermos agir no sentido da construção de um mundo em que todos possam exercer plenamente a cidadania e todos tenham os mesmos direitos e deveres, o que deve ser o objetivo maior da educação numa sociedade democrática e igualitária.
O primeiro passo para esta compreensão é perceber que as produções dos meios de comunicação, sejam filmes, noticiários ou programas de rádio ou de auditório têm uma direção, sofrem uma montagem, apresentam uma perspectiva. Direção, edição, perspectiva. Que realidade é mostrada através desses mecanismos? Quanta direção, edição, viés, existem nos telejornais, novelas e filmes de ficção? E nos livros didáticos? E nos editoriais? E nas postagens das redes sociais? Então, que mundo é esse que nos é mostrado? Que realidade é essa a que temos acesso? Quantos mundos existem num olhar? Quantos mundos cabem numa tela? Quanto do mundo os mecanismos de distribuição dos meios de comunicação e os algoritmos das redes sociais deixam de nos mostrar? Quanto do mundo não sabemos que existe? Afinal, como escreveu Luhmann, citando Heinz Von Foerster em um texto sobre as possibilidades da cibernética de segunda ordem, “não se pode ver que não se vê o que não se vê”[iv].
Essas perguntas todas apontam para a importância de um trabalho de reflexão sobre a educação, os meios de comunicação e as redes sociais e provocam outras tantas interrogações fundamentais:
- Nossas escolas e nossos professores e professoras facilitam e estimulam o acesso de seus estudantes à diversidade da produção cultural existente no mundo e disponível na web?
- Que acesso tem nossos estudantes à multiplicidade de visões de mundo disponíveis no campo da ciência, das artes e da cultura?
- Quais as opções de informação e entretenimento que a escola apresenta aos estudantes?
- Que mundo estamos mostrando a nossas crianças?
- Que mundo é esse que estamos construindo?
- Que realidade é essa na qual acreditamos viver?
E já que abri este texto citando a frase inicial de Luhmann em “A realidade dos meios de comunicação”, entendo que seja muito adequado concluí-lo com a frase final do mesmo livro, que com certeza pode funcionar como gatilho para a produção de novas reflexões:
"Como é possível aceitar as informações sobre o mundo e sobre a sociedade como sendo informações sobre a realidade, quando se sabe como elas são produzidas?”[i]

Caco Baptista é sociólogo, professor de antropologia, bioética e sociologia, coordenador do projeto Vozes da Cidadania, palestrante da Casa Amora. Foi Pró-reitor de Planejamento e Desenvolvimento Institucional da UNISC, onde também foi chefe do Departamento de Ciências Humanas e coordenador do curso de Ciências Sociais. Publica mensalmente na Casa do Criar.
Blog Leituras do professor Caco Baptista https://leiturasdoprofessorcaco.home.blog/
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*Foto do autor.
[i] LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. São Paulo: Paulus, 2005, p. 15
[ii] LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. São Paulo: Paulus, 2005, p. 130
[iii]Niklas Luhmann morreu em 1998 e a primeira edição de seu texto é de 1995. Ele não fez nenhuma menção às redes sociais no texto, mas a sua definição de meios de comunicação nos permite tranquilamente incluir as redes sociais sem precisar nenhuma ampliação: “Sob o conceito de meios de comunicação devem ser compreendidas, de agora em diante, todas as instituições da sociedade que se servem de meios técnicos de reprodução para a difusão da comunicação. Consideram-se aqui principalmente, livros, revistas, jornais produzidos de forma impressa, mas também processos de reprodução fotográfica ou eletrônica de qualquer tipo, na medida em que fabriquem produtos em grande quantidade a um público indeterminado.” (op. cit., p. 16). Mais adiante, no capítulo 4, Luhmann apresenta três áreas de programação do sistema dos meios de comunicação que também nos autorizam a incluir as redes sociais nesse sistema: “[…] uma diferenciação interior que se estabelece entre as distintas áreas da programação. Sem ter a intenção de oferecer uma dedução e uma fundamentação sistemática de uma tipologia fechada, distinguimos de forma puramente indutiva entre: notícias e reportagens (capítulo 5), publicidade (capítulo 7), entretenimento (capítulo 8). […] algumas sobreposições não poderão ser evitadas, e, acima de tudo, vai se poder constatar, em cada uma dessas áreas, um entrelaçamento recursivo. […]” (op. cit., p. 51). Ou seja, se assim assim como jornais, rádios e tevês, as redes sociais também se servem de meios tácnicos para para difusão da comunicação e nessa comunicação oferecem notícias, publicidade e entretenimento, não há dúvidas de que podem ser incluídas legitimamente no sistema de meios de comunicação que Luhmanndescreve em seu livro.
[iv]VON FOERSTER, Heinz. Cybernetics of Cybernetics. In: Understanding Understanding, New York: Springer, 2003, p. 284.
[v]LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. São Paulo: Paulus, 2005, p. 194
